HÁ ALGUNS INCOMPETENTES, MAS POUCOS INOCENTES
Como caixa de ressonância daqueles que de quem é porta-voz
(tendo há muito deixado de ter voz própria), o presidente da Comissão Europeia,
o português Durão Barroso, veio alinhar-se com os conselhos da troika sobre
Portugal: não há outro caminho que não o de seguir a “solução” da austeridade e
acelerar as “reformas estruturais” — descer os custos salariais, liberalizar
mais ainda os despedimentos e diminuir o alcance do subsídio de desemprego.
Que o trio formado pelo careca, o etíope e o alemão ignorem
que em Portugal se está a oferecer 650 euros de ordenado a um engenheiro
electrotécnico falando três línguas estrangeiras ou 580 euros a um dentista em
horário completo, é mais ou menos compreensível para quem os portugueses são
uma abstracção matemática. Mas que um português, colocado nos altos círculos
europeus e instalado nos seus hábitos, também ache que um dos nossos problemas
principais são os ordenados elevados, já não é admissível. Lembremo-nos disto
quando ele por aí vier candidatar-se a Presidente da República.
Durão Barroso é uma espécie de cata-vento da impotência e
incompetência dos dirigentes europeus. Todas as semanas ele cheira o vento e
vira-se para o lado de onde ele sopra: se os srs. Monti, Draghi, Van Rompuy se
mostram vagamente preocupados com o crescimento e o emprego, lá, no alto do
edifício europeu, o cata-vento aponta a direcção; se, porém, na semana
seguinte, os mesmos senhores mais a srª Merkel repetem que não há vida sem
austeridade, recessão e desemprego, o cata-vento vira 180 graus e passa a
indicar a direcção oposta.
Quando um dia se fizer a triste história destes anos de
suicídio europeu, haveremos de perguntar como é que a Europa foi governada e destruída
por um clube fechado de irresponsáveis, sem uma direcção, uma ideia, um
projecto lógico. Como é que se começou por brincar ao directório castigador
para com a Grécia para acabar a fazer implodir tudo em volta. Como é que se
conseguiu levar a Lei de Murphy até ao absoluto, fazendo com que tudo o que
podia correr mal tivesse corrido mal: o contágio do subprime americano na banca
europeia, que era afirmadamente inviável e que estoirou com a Islândia e a
Irlanda e colocou a Inglaterra de joelhos; a falência final da Grécia,
submetida a um castigo tão exemplar e tão inteligente que só lhe restou a
alternativa de negociar com as máfias russas e as Three Gorges chinesas; como é
que a tão longamente prevista explosão da bolha imobiliária espanhola acabou por
rebentar na cara dos que juravam que a Espanha aguentaria isso e muito mais;
como é que as agências de notação, os mercados e a Goldman Sachs puderam
livremente atacar a dívida soberana de todos os Estados europeus, excepto a
Alemanha, numa estratégia concertada de cerco ao euro, que finalmente tornou
toda a Europa insolvente.
Ou como é que um pequeno país, como Portugal, experimentou
uma receita jamais vista — a de tentar salvar as finanças públicas através da
ruína da economia — e que, oh, espanto, produziu o resultado mais provável:
arruinou uma coisa e outra. E como é que, no final de tudo isto, as periferias
implodiram e só o centro — isto é, a Alemanha e seus satélites — se viu coberto
de mercadorias que os seus parceiros europeus não tinham como comprar e
atulhado em triliões de euros depositados pelos pobres e desesperados e que
lhes puderam servir para comprar tudo, desde as ilhas gregas à água que os
portugueses bebiam.
Deixemos os grandes senhores da Europa entregues à sua
irrecuperável estupidez e detenhamo-nos sobre o nosso pequeno e infeliz
exemplo, que nos serve para perceber que nada aconteceu por acaso, mas sim
porque umas vezes a incompetência foi demasiada e outras a inocência foi de
menos. O que podemos nós pensar quando o ex-ministro Teixeira dos Santos ainda
consegue jurar que havia um risco sistémico de contágio se não se
nacionalizasse aquele covil de bandidos do BPN? Será que todo o restante
sistema bancário também assentava na fraude, na evasão fiscal, nos negócios
inconfessáveis para amigos, nos bancos-fantasmas em Cabo Verde para esconder
dinheiro e toda a restante série de traficâncias que de há muito — de há muito!
— se sabia existirem no BPN? E como, com que fundamento, com que ciência, pode
continuar a sustentar que a alternativa de encerrar, pura e simplesmente,
aquele vão de escada “faria recuar a economia 4%”? Ou que era previsível que a
conta da nacionalização para os contribuintes não fosse além dos 700 milhões de
euros?
O que poderemos nós pensar quando descobrimos que à despesa
declarada e à dívida ocultada pelo dr. Jardim ainda há a somar as facturas
escondidas debaixo do tapete, emitidas pelos empreiteiros amigos da “autonomia”
e a quem ele prometia conseguir pagar, assim que os ventos de Lisboa lhe
soprassem mais favoravelmente?
O que poderemos nós pensar quando, depois de tantos anos a
exigir o fim das SCUT, descobrimos que, afinal, o fim das auto-estradas sem
portagens ainda iria conseguir sair mais caro ao Estado? Como poderíamos
adivinhar que havia uns contratos secretos, escondidos do Tribunal de Contas,
em que o Estado garantia aos concessionários das PPP que ganhariam sempre X sem
portagens e X+Y com portagens?
Mas como poderíamos adivinhá-lo se nos dizem sempre que o
Estado tem de recorrer aos serviços de escritórios privados de advocacia (sempre
os mesmos), porque, entre os milhares de juristas dos quadros públicos, não há
uma meia dúzia que consiga redigir um contrato em que o Estado não seja sempre
comido por parvo?
A troika quer reformas estruturais? Ora, imponha ao Governo
que faça uma lei retroactiva — sim, retroactiva — que declare a nulidade e
renegociação de todos os contratos celebrados pelo Estado com privados em que
seja manifesto e reconhecido pelo Tribunal de Contas que só o Estado assumiu
riscos, encaixou prejuízos sem correspondência com o negócio e fez figura de
anjinho. A Constituição não deixa? Ok, estabeleça-se um imposto extraordinário
de 99,9% sobre os lucros excessivos dos contratos de PPP ou outros celebrados
com o Estado. Eu conheço vários.
Quer outra reforma, não sei se estrutural ou conjuntural,
mas, pelo menos, moral? Obrigue os bancos a aplicarem todo o dinheiro que vão
buscar ao BCE a 1% de juros no financiamento da economia e das empresas viáveis
e não em autocapitalização, para taparem os buracos dos negócios de favor e de
influência que andaram a financiar aos grupos amigos.
Mais uma? Escrevam uma lei que estabeleça que todas as
empresas de construção civil, que estão paradas por falta de obras e a despedir
às dezenas de milhares, se possam dedicar à recuperação e remodelação do
património urbano, público ou privado, pagando 0% de IRC nessas obras. Bruxelas
não deixa? Deixa a Holanda ter um IRC que atrai para lá a sede das nossas
empresas do PSI-20, mas não nos deixa baixar parte dos impostos às nossas
empresas, numa situação de emergência? OK, Bruxelas que mande então fechar as
empresas e despedir os trabalhadores. Cumpra-se a lei!
Outra? Proíbam as privatizações feitas segundo o modelo em
moda, que consiste em privatizar a parte das empresas que dá lucro e deixar as
“imparidades” a cargo do Estado: quem quiser comprar leva tudo ou não leva
nada. E, já agora, que a operação financeira seja obrigatoriamente conduzida
pela Caixa Geral de Depósitos (não é para isso que temos um banco público, por
enquanto?). O quê, a Caixa não tem vocação ou aptidão para isso? Não me digam!
Então, os administradores são pagos como privados, fazem negócios com os
grandes grupos privados, até compram acções dos bancos privados e não são
capazes de fazer o que os privados fazem?
E, quanto à engenharia jurídica, atenta a reiterada falta de
vocação e de aptidão dos serviços contratados em outsourcing para defenderem os
interesses do cliente Estado, a troika que nos mande uma equipa de juristas
para ensinar como se faz. Tenho muitas mais ideias, algumas tão ingénuas como
estas, mas nenhumas tão prejudiciais como aquelas com que nos têm governado. A
próxima vez que o careca, o etíope e o alemão cá vierem, estou disponível para
tomar um cafezinho com eles no Ritz. Pago eu, porque não tenho dinheiro para os
juros que eles cobram se lhes ficar a dever...
Miguel Sousa Tavares
«Expresso», 2 de Junho de 2012